Eu sempre quis escrever sobre minha profissão, mas achava que não era a hora. Fiquei adiando o que não era adiável, mas insisti naquela mania minha. A hora chegou. Quem não sabe ainda o que é ser enfermeira, vou tentar explicar do que se trata da maneira mais singela e cruel, como aprendi nesses poucos e tantos anos de trabalho. Lembro-me que um vez tinha operado o dedo da mão. Cursava o segundo ano da faculdade e tinha 19 anos. Assustada, amedrontada, sozinha e estava no meio da recuperação anestésica e ouvia: "Hoje, vou jogar tênis depois daqui." E o outro balbuciava por de trás da máscara cirúrgica: "Te contei daquela menina de conheci?". E falavam, conversavam sobre seu dia e sua rotina enquanto terminavam a sutura da minha mão. "Façam direitinho porque ela é da enfermagem e não vai querer mostrar uma mão feia no trabalho" - dizia o professor médico que acompanhava a cirurgia. Terminaram tudo rápido e nem se quer olhavam no meu rosto. Meus olhos acompanhavam tudo e eu não sentia nada no braço esquerdo. Foram embora satisfeitos. Passaram-se cinco minutos, eu estava tremendo de frio por conta da cirurgia e eu só queria chorar e sair dali. Entrou então, a figura mais importante dessa história. "Elisabete" - sorrindo- e com um copo de Nescau na mão e uma manta na outra. Chegou perto de mim, imobilizou minha mão precisamente com a faixa de forma que nem percebi que podia doer. Reparei em seu brinco e no batom que usava. Ela olhou dentro dos meus olhos. " Você deve estar com frio". Aconchegou a manta em meu corpo. Me ajudou a sentar. Pegou o copo de Nescau e me deu, gentilmente, esperando que eu tomasse cada gole daquela bebida quente e segura." Já acabou. Está tudo bem. Mais meia hora e você pode ir embora". Saiu uma lágrima da minha face, quase involuntária. Ela enxugou com a mão de luva. " Está tudo bem, fique tranquila. Esse nervosismo é normal". E saiu. Depois de tantos anos, não me lembro nada daquele dia, nem do centro cirúrgico, nem do frio. Mas daquele sorriso e da manta eu lembrei quando fiz um juramento na minha formatura. Sempre trabalhei com crianças. Terminei minha fase assistencial com aquelas bem graves da Unidade de Cuidados Intensivos. E me permiti sempre trazer uma manta simbólica para aqueles que sentiam frio. Chorei com as mães, abraçei os pais e, quase fui demitida por deixar os irmãos entrarem em meu setor. Pentiei e passei perfume com cheiro de bebê em muitas crianças antes da visita das mães. Já ninei órfãos abandonados nos hospitais como se fossem meu filho. Já lavei roupas deles em minha casa e comprei tantas outras para aquelas que não tinham o que vestir. E já sorri e fui em festas de aniversários daqueles desacreditados pelos humanos. Vi em cada dia de um plantão "ruim e pesado" - como falamos- que existe uma força maior que a manta que trago e me curvei. Cresci como ser humano vendo passos daqueles que não poderiam andar. Tive o maior contato com a fé. Alinhei meu conhecimento e meu estudo para que eu possa sempre trazer da melhor maneira possível o que um hospital pode dar. O aconchego velado nos cinco minutos a mais daquela mãe que chora na meia hora da visita. E a frieza, quase imperceptível por mim, na mão certeira nos procedimentos mais difícieis. Eu salvo vidas também. Mas não prescrevo medicamentos. Eu venho depois. E esse depois é que quero ser lembrada. Quando meu filho nasceu e quase foi para a mesmo setor que eu trabalhava, a enfermeira passou a madrugada comigo no quarto tentando fazê-lo ficar bem. Quando amanheceu, ela disse: " Espero que eu tenha feito a diferença." E fez. Hoje ele tem quatro anos, um garoto esperto e saudável. Não me recordo do obstetra. Mas, nunca vou me esquecer do que ela fez por mim. Quero fazer a diferença sempre. Sem méritos. Mas, que se lembrem que fiz o pude fazer de melhor naquele momento. Que seja naquele procedimento que consegui, que seja apenas com um copo de Nescau, com uma manta ou com uma simples companhia.