Aos poucos e bons. Sempre.

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quinta-feira, 15 de julho de 2010

Ana e Marcos - e Clarice

Ana está casada com Marcos há dez anos, quase onze.Eles têm três filhos – Leonardo, Samanta e Antônio – esse último, o caçula, foi em homenagem ao avô paterno. Ela trabalha como Gestora de Markenting de uma multinacional em São Paulo, onde moram todos. Ana adora seu trabalho, às vezes fica cansada com a rotina e jornada quádrupla que enfrenta diariamente para conseguir cuidar de todos como uma verdadeira mulher dos dias atuais. Seu trabalho consome quase todo seu dia. Acorda as cinco e trinta da manhã, caminha no parque perto da sua casa, volta por volta das seis e quinze, toma uma ducha rápida e começa a acordar um por um em casa dando beijinhos nas bochechas rosadas de seus filhos e um selinho em seu marido Marcos para dispertá-lo. Prepara o café de todos com suas respectivas preferências, um gosta com pouca manteiga e pão na chapa, outra come cereal com frutas (só banana e morango) e o menor achocolatado com leite morno e bisnaguinha com geléia (de uva). O marido café preto levemente forte sem açúcar e mamão fatiado em pequenos cubinhos (certa vez, ele até mostrou a ela como quer que os corte de dois em dois centímetros). Logo Ângela chega com um sorriso largo e com gengiva rocha, sua secretária do lar – e confidente nas horas ruins e boas.As crianças se exitam na mesa com sua presença e seus beijos barulhentos. Chega contando que demorou por causa do atraso do ônibus, mas pede pra patroa perdoar com uma piscadinha infalível. Ana sorri e concorda silenciosamente. Marcos solta um “HUM” e continua a ler o jornal. São seis e cinquenta e cinco, o transporte escolar buzina. Os três correm em direção a porta para suas mochilas como cãezinhos treinados. Saem derrubando alguns talheres, guardanapos e qualquer coisa que estivesse pela frente. – Ei, meus filhos, vocês não estão esquecendo de nada não – Ana pergunta. Lá voltam os três e abraçam Ana de uma vez só. Ela fecha os olhos e cheira a orelha de cada um. “Cheiro de filho” – ela pensa. – E o beijo do pai de vocês – os três olham pra mesa e dão tchau dali mesmo. Marcos abaixa o jornal e com os olhos semi-fechados despede-se das crianças. – Não quero bilhetes da escola – resmunga. As crianças saem em disparda.A casa fica silenciosa. Ana pensa que ele poderia ter dado um beijo nas crianças. Ia falar, mas deixou pra lá, sabe que seu marido é muito mais ligado a fatos e números do que cheiro de orelha e sorriso. Ela volta pra mesa do café. Marcos toma o último gole e fecha o jornal. Ângela trás da cozinha o que Ana gosta de comer, torradas com creme de queijo e suco de laranja. Ana sorri pela segunda vez como uma criança que ganhou um carinho. Marcos levanta e vai tomar banho. Ela fica sozinha na mesa posta, morde lentamente cada torrada e escuta cada barulhinho crocante de cada dentada, toma o suco e fica olhando a mesa, cheia de utensílios e comida e vazia ao mesmo tempo. Vazia como ela, como seu coração. Ângela grita da cozinha o que ela quer que faça para janta. Ana responde que não faça nada, pois hoje é aniversário de casamento e vai preparar uma surpresa para Marcos. As crianças vão ficar na avó materna e ela pretende fazer um jantarzinho romântico para os dois.Marcos desce pelas escadas de terno e gravata apressado como sempre. – Onde está meu celular Ana – ele pergunta com a voz rouca de fumar charuto. “Em cima do aparador junto com a chave do seu carro e sua pasta do lado do pen-drive para sua reunião importantíssima que você não pode esquecer” – Ah é .- Ele responde como se soubesse onde estava tudo e faz aquela cara de que sabia inclusive do pen-drive. “ E se der tudo certo, meu salário vai aumentar, isso é que importa” – em tom de homem sério. Ana levanta e vai em direção ao marido para dar lhe um beijo de despedida. Marcos já estava na porta. “Calma, me espera – ela pede em tom defensivo. “Estou atrasado, Ana. “ Só queria te dar um beijo de boa sorte”. Ela o beija calmamente, levanta os pés pra alcançar os lábios de Marcos. Ele responde segurando suavemente sua cintura. “Precisa correr os invés de caminhar pra perder essa barriga e ganhar mais cintura “ e ri, um sorriso sem graça e insolente. Ela diz que sim silenciosamente com a cabeça e ajeita a gravata enquanto Marcos olha pra cima pra ela poder ajeitar melhor. “Vou tentar” – ela responde. Ana fecha a porta e tranca com a chave porque sabe que Marcos vai reclamar de tantas vezes que ela já deixou apenas encostada. Sobe para seu quarto, escolhe a roupa e se veste. Ao olhar no espelho percebe que realmente precisa sim deixar de comer e perder peso. Escova seu cabelo longo e prende em um rabo-de-cavalo.Ajeita seu blazer cinza e ao deixar o quarto, volta correndo. Tinha esquecido de colocar a corrente com os três pingentes de seus filhos. Desce as escadas cantarolando qualquer coisa, deixa o dinheiro pra Ângela para as compras do dia e começa seu dia com um “Fica com Deus, Ana”. Ao chegar no escritório não consegue se concentar em nada, só consegue lembrar que precisa comprar uma lingerie nova e providenciar o jantar. E o vinho. Faz umas ligações importantes. Chama sua secretária, Ivonete, e pede pra cancelar seus compromissos do dia dizendo que hoje é um dia muito especial, aniversário de casamento e que precisa providenciar umas coisas. Ivonete pisca pra Ana, aquela mesma piscada confidencial. Ana sorri pela terceira vez no dia. Deixa o escritório e pára no shopping. Faz unha, pinta de vermelho provocante, faz escova e hidratação no cabelo, depilação e passa o cartão de crédito. “Alô, Camila, por acaso você tem o endereço daquele sex-shop que você comprou aquela sua fantasia de coelhinha , é que vou fazer uma surpresa para o Marcos. Ah tá, peraí que vou anotar. Abre com as mãos tremendo sua agenda – nuca tinha ido em um lugar desses antes. Ah , sim, então tá bom, depois de conto como foi. Beijos querida. Lá estava ela na rua Augusta, entrou quase que disfarçada por trás de seus óculos-escuros. Riu pela quarta vez no dia ao se ver no meio daquela parnafenália sexual.O atendente era um homessesual que deixaria até o Fidel Castro a vontade ali. Experimentou uma porção de coisas. Escolheu o espartilho preto bem justo pra esconder sua barriguinha. Pensou que ele ficaria ótimo com aquela sandália preta de tirinhas que ela tinha. “Boa sorte, Ana”. E saiu da loja com essa frase dita pelo funcionário.Eram seis e meia da tarde. Ligou pra sua mãe e checou se estava tudo bem com as crianças. E estava, iam ao shopping jantar em um fast-food e depois iam ao cinema. Ana desligou o celular e seu coração estava ansioso. Passou em um resturante japonês e pediu o que Marcos gostava – temaki de peixe branco com cebolinha, sashimi de atum e hot filadélfia de salmão. Pra ela a mesma coisa, nem se importava com o iria comer, queria mesmo era tomar um vinho e amar Marcos. “Ai meu Deus, o vinho”. Eram sete e trinta e Marcos sempre chegava por volta das oito e meia. Passou correndo no supermercado e comprou três garrafas de vinho. Dois tintos e um branco. Dirigiu correndo para casa. Tomou um banho cuidadoso. Passou creme por todo o corpo e burrifou o perfume preferido dele por partes escolhidas em seu corpo. Vestiu seu espartilho preto, calçou a sandália e se olhou no espelho. Estava linda. Tirou cuidadosamente a corrente com os três pingentes do pescoço. Soltou o cabelo e estava segura de si. Seu coração estava tão ansioso quanto uma garota de quinze anos na véspera do seu primeiro beijo. Ela o amava. Arrumou cuidosamente a comida na mesa. Acendeu duas velas. Olhou pra o relógio, eram nove horas da noite. “Ele deve estar chegando – pensou”. Abriu a garrafa de vinho e esperou tomando cada gole lentamente. Nove e meia. Resolveu ligar no celular.” Marcos, onde você está – ao fundo um barulho de bar ecoava com risadas. “Ah é Ana, esqueci de te ligar, a reunião deu tudo certo e estamos comemorando o sucesso, vou chegar tarde” . “Hum ... –ela repondeu e virou o copo de vinho de uma só vez” , “Então ok, depois a gente se fala”. “tá bom Ana, aconteceu alguma coisa, ia te ligar , mas cabei esquecendo, estava aqui com o Rogério lembra dele, então ele vai se casar e estamos aproveitando a comemoração ...”, “Não, tudo ótimo, só estava preocupada”. “Então tá bem Ana, te amo, viu” .” Hum – ela respondeu, até amanhã”. Desligou. Ana encheu o copo de vinho e tomou rápido novamente. Olhou para a comida e comeu o temaki, jogou o resto fora. Encheu o copo novamente e tirou o espartilho que estava apertado. Guardou dentro da sacola no fundo do armário. Vestiu o pijama. Tomou seu calmante. Sabe que não pode beber com o remédio,mas queria dormir rápido. Riu de si. O quinto sorriso do dia. Um sorriso com dentes de chumbo, como a música. Acendeu um cigarro na janela do quarto e ficou vendo os carros passar. Abriu a segunda garrafa de vinho e encheu o copo de novo. Sua vida passou em minutos pela sua mente. Queria saber onde tinha se perdido, apesar de todos acharem que ela tinha se achado. Estava tonta de vinho. Correu até o banheiro e tornou a colocar a corrente com os três pingentes. Deitou sozinha na cama vazia e antes de adormecer, pensou “ Tenho que parar com a Clarice,acho que ela está me deixando muito confusa, vou tentar a Marie Clarie ...” – leia-se Clarice – a Lispector. E adormeceu ao lado do copo de vinho pela metade apoiado em sua coleção de livros de cabeceira.